terça-feira, 28 de setembro de 2010

Carta-resposta a Bárbara Heliodora

E não fazes nada?

Aderbal Freire-Filho

Vou escrever mais uma vez para comentar (questionar, discutir) uma crítica de teatro? Penso: melhor escrever uma carta (papel de seda?) só para a autora e, talvez com mais proveito, apontar suas incongruências. Fico uns dias vacilando, alimentando dúvidas, mas já devo saber que no fim não resisto.

Depois, não é tanto por mim que escrevo, mas pensando em preservar um pouco a saúde do teatro carioca, que não tem vacinas contra um vírus tão avassalador, alojado na página cultural do jornal de mais prestígio, única página cultural relevante e lida da cidade. O jeito é apelar para os anti-corpos do organismo teatral, isto é, nós mesmos.

E como venho cumprindo esse papel sistematicamente (Hamlet, Macbeth), por que não completar essa trilogia, se tenho aqui a melhor oportunidade de mostrar os equívocos graves dessa(s) crítica(s), tão óbvios eles são nesse caso?

E se em geral imagino o dano causado ao teatro, ao pensar nos seus prováveis leitores, aqui vejo os efeitos concretos. Mais precisamente: devo uma explicação a dois mestres da música brasileira que chegam ao nosso terreiro, o teatro, e se assustam com tamanho despautério. Eles podem dizer: então é esse o nível do teatro brasileiro, é isso que sabem de música no teatro? Bárbara Heliodora é considerada uma autoridade, eles sabem, e se a autoridade fala assim, deve falar em nome de todos. Como acho que posso falar em nome ao menos de outra corrente, tomo a palavra.

Jaques Morelembaum é um mestre reconhecido por todos os grandes compositores e intérpretes da MPB, autor de arranjos para alguns dos expoentes da nossa música. Jaime Além, outro mestre, é o arranjador e maestro da banda de Maria Bethânia há mais de 20 anos. Jaques e Jaime fizeram os arranjos das músicas de Tom e Vinicius para a nossa montagem de Orfeu. Com outro parceiro: Tom, o próprio. Jaques, durante muito tempo, tocou com Tom, com ele viajou, ganhou prêmios. Aqui, Jaques resgatou alguns arranjos originais do maestro e com eles compôs parte do concerto que nos oferece em Orfeu. Jaime, violonista maior, além de arranjador, é o violão de Orfeu, um privilégio dessa montagem. Pois bem, de Jaques, Jaime e Tom, diz BH que “os arranjos e o som do pequeno conjunto musical são fracos e desagradáveis ao ouvido”.

Digo mais: o “pequeno conjunto”, liderado por Jaques e Jaime é composto de sete músicos de primeira grandeza. Além dos dois (um luxo para um musical a presença deles tocando), estão Marcelo Bernardes (sopros), João Carlos Coutinho (teclados), Rômulo Gomes (baixo), Ronaldo Silva (bateria), Zero Telles (percussão), e quem conhece música brasileira sabe muito bem de quem estou falando, uma seleção brasileira da MPB. Não há, em todos os musicais do nosso teatro – com todo o respeito por seus ótimos músicos – uma banda dessa grandeza presente no palco. Ouvi-los e não perceber a qualidade da música que produzem, já a partir da excepcional abertura, com arranjo do próprio Tom, só tem uma explicação: sensibilidade zero.

Devo também uma explicação ao poeta Vinicius, que nos olha de uma daquelas nuvenzinhas do Chico Caruso e pergunta (com sotaque baiano): o que aconteceu, meu rei, com o teatro brasileiro, que eu deixei avançando? Continua avançando, poeta, apesar desses ataques. Mas é duro. Diz a crítica, por inacreditável que pareça: “tornou-se ainda mais evidente a precariedade do texto de Orfeu, entre outras coisas por preservar o tratamento na segunda pessoa, totalmente superado hoje em qualquer texto que se apresente como brasileiro”.

Bárbara Heliodora destrói de uma penada só todo o teatro de Nelson Rodrigues: vou direto ao nosso autor maior, para não precisar dizer mais nada. Posso pegar qualquer peça do Nelson, abrir ao acaso em qualquer página e comprovar que está lá o tratamento em segunda pessoa, o tratamento usual em suas peças. E nem dizer que ela comete suicídio, pois é esse o tratamento que costuma usar em suas traduções de Shakespeare.

Quanto a mim, só quero desautorizar sua suposição: “a direção parece reconhecer a fragilidade do texto e ...” O texto é ótimo, poesia de altíssimo nível e personagens, situações, diálogos, todos de extraordinária força dramática. Como Vinicius, ao imaginar futuras montagens, considerou seu Orfeu uma obra aberta, desenvolvi algumas indicações do poeta e escrevi cenas baseadas nessas indicações. E dei identidade ao coro e ao corifeu: um poeta e seus amigos. Criando outros registros, a adaptação ressalta a beleza do registro clássico do original. E devo às atrizes e aos atores de Orfeu, que mostram a maioridade do teatro brasileiro, a dimensão ao mesmo tempo épica e natural que é dada a tão rico material dramatúrgico.

O Theatre de L’Odeon, de Paris, em sua temporada oficial, apresentou a versão do diretor Krzysztof Warlikowski para Um bonde chamado desejo de Tenessee Williams, com Isabelle Huppert no papel de Blanche. O diretor acrescentou ao original novos textos e muitas canções. Isso não significa que a peça original é ruim, nem que o diretor não gosta dela. Ah, o teatro andante, esse cavaleiro sempre vivo.

Bom, vou abrir ao acaso qualquer peça de Nelson Rodrigues e... Vejam só o que Ismael diz a Virgínia (Anjo Negro, Teatro Completo, Vol. 2, Ed. Nova Fronteira, pg. 125). Só queria mostrar o mestre em segunda pessoa, mas... pura coincidência!

“Começas a compreender? E não tens medo?”

Um comentário:

  1. Bom texto, Jessica! Não conheço aquele crítica da Bárbara Heliodora, mas se ela criticou serioso a lingua teatral da peça "Orfeu" acho ela ganha agora já mas atenção que ela merece. Você deu (pra Senora H.: tu deste) o resposta certo e claro, Jessica. Valeu! Um beijo de Berlim, Friedel

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